A psicóloga e terapeuta familiar Rute Agulhas e o assistente social e mediador familiar Jorge Neo Costa lançaram, esta semana, 'Podes Falar Comigo', um livro que pretende ajudar a prevenir e reconhecer a violência sexual contra crianças e a reagir perante um crime destes.
Em entrevista ao Notícias ao Minuto, os membros do Grupo VITA - grupo de acompanhamento das situações de violência sexual contra crianças e adultos vulneráveis no contexto da Igreja Católica em Portugal - revelaram que tipo de comportamentos a que os educadores e cuidadores devem estar atentos. Indicam também que crianças e jovens podem, eventualmente, ser mais propensos a este tipo de crimes. Mas não só.
Rute Agulhas e Jorge Neo Costa deixaram vários alertas. É essencial estar informado sobre o tema, "investir no conhecimento", e abordar esta problemática junto dos mais novos, "sem tabu". Porque falar de abusos sexuais, "não é falar de sexo", nem apenas dizer às crianças que não devem falar com estranhos. "É preciso dizer que podem sentir-se desconfortáveis com alguém que conheçam", uma vez que "a maior parte das situações de violência sexual ocorre no contexto intrafamiliar".
O Estado também tem um papel importante nesta prevenção. E tem de fazer mais, segundo os especialista. "É urgente criar uma estrutura de resposta às situações de violência sexual contra crianças" e, igualmente urgente, "pensar em estratégias de prevenção da reincidência dos abusadores".
E para isso é importante, segundo Rute Agulhas, "realizar em Portugal um estudo de prevalência da violência sexual contra crianças abrangendo todas as pessoas e os diversos contextos onde essa mesma violência possa ter ocorrido" e não só na Igreja.
Falamos não apenas em sinais ou sintomas físicos, que são, habitualmente, os mais fáceis de detetar (mas também os menos frequentes), mas sobretudo em alterações emocionais e comportamentais
Lançaram o livro 'Podes Falar Comigo', a 19 de fevereiro, um guia que pretende ajudar a prevenir e reconhecer a violência sexual contra crianças. A quem é dedicado este livro?
Rute Agulhas (RA): Este livro é dedicado a todos aqueles que desejam contribuir para uma maior proteção e segurança das crianças e jovens. Assim, foi escrito a pensar nos pais e outros familiares, mas também nos profissionais das mais diversas áreas, como a educação, a psicologia, o serviço social ou a área judicial.
Quais os principais sinais que os educadores devem estar atentos? E quais os principais conselhos para prevenir estas situações?
Jorge Neo Costa (JNC): Os educadores e cuidadores conhecem as suas crianças melhor do que ninguém e, por isso, devem estar atentos a qualquer alteração no seu funcionamento, seja emocional, comportamental ou social. Ou seja, é importante que tentem perceber o comportamento da criança tendo em conta o seu contexto, sendo especialmente preocupantes alterações que sejam mais persistentes ou frequentes.
Falamos não apenas em sinais ou sintomas físicos, que são, habitualmente, os mais fáceis de detetar (mas também os menos frequentes), mas sobretudo em alterações emocionais (por exemplo, alterações de humor, desconfiança relacional) e comportamentais (como as alterações nos resultados escolares ou os comportamentos mais agressivos ou passivos, por exemplo).
Para prevenir situações de violência sexual é importante que todos os adultos invistam em aumentar os seus conhecimentos sobre esta temática, estejam atentos a eventuais sinais de alerta e ajudem a criar ambientes de proteção e cuidado. A prevenção compete aos adultos, mas deve também envolver ações com as crianças, ajudando-as a aumentar conhecimentos (saber o que é o abuso e quem pode abusar) e a desenvolver competências (saber reagir e pedir ajuda).
Existem alguns fatores que podem aumentar o risco de vitimização
Há crianças e jovens mais propensos a este tipo de abusos?
RA: Embora possamos afirmar que não existe um perfil de vítima, na medida em que crianças de todas as idades, de ambos os sexos e dos mais diversos contextos socioeconómicos podem ser vitimas de violência sexual, sabemos também que existem alguns fatores que podem aumentar o risco de vitimização. Estes fatores de risco podem ser de natureza individual (por exemplo, ter algum problema de saúde mental ou ser portador de qualquer forma de deficiência), familiar (por exemplo, viver num ambiente familiar mais conflituoso) ou comunitária (por exemplo, culpabilização da vítima, fraca rede social de apoio). A um nível mais macro, destacamos ainda outros fatores de risco, como a pobreza e a violência, os conflitos armados ou a legitimação do casamento infantil.
No livro explicam como devemos abordar esta problemática, por idades. Há alguma idade em que seja mais desafiante falar sobre abusos sexuais?
JNC: Tendo em conta que esta temática continua a ser um tabu na nossa sociedade, acreditamos que falar da mesma, para muitas pessoas, será sempre desafiante, independentemente da idade da criança. Habitualmente, quando temos menos conhecimentos sobre esta problemática sentimos mais receio, e podemos tender a pensar que falar de abuso sexual significa falar de sexo – o que não é verdade. Falar da prevenção do abuso sexual significa falar de cuidado, proteção e segurança. Naturalmente, os conteúdos que são transmitidos devem ser ajustados à idade e maturidade das crianças.
Com as crianças mais novas (em idade pré-escolar), podemos começar por ensinar o nome correto de todas as partes do corpo e a importância em proteger as partes íntimas ou privadas. Devemos ainda ensinar que existem segredos bons e segredos maus e que estes últimos nunca devem ser guardados. É também importante transmitir a mensagem de que podem recusar toques indesejados e que não têm de obedecer sempre aos adultos. À medida que as crianças crescem e têm maior autonomia (já em idade escolar), devemos também falar de ambientes seguros e inseguros e de aprender a escutar a sua intuição e emoções. Naturalmente, é ainda importante começar a abordar a segurança em diferentes contextos (por exemplo, dormidas fora de casa, atividades extracurriculares e mundo online) e, mais tarde, já com adolescentes, é fundamental falar sobre relações saudáveis e abusivas e, ainda, sobre o conceito de consentimento.
É importante percebermos que a prevenção da violência sexual não é um assunto que se fale num dia e que fica resolvido. Falamos de conteúdos que devem ser abordados de forma natural, nas mais diversas atividades do dia a dia da criança, e ao longo do seu crescimento.
É fundamental não alertar as crianças apenas para o chamado 'stranger danger', ou seja, para os perigos associados aos estranhos, mas ajudá-las também a compreender que podem sentir-se desconfortáveis com alguém que conheçam
É da responsabilidade dos adultos manter as crianças seguras, mas, no geral, é difícil reconhecer uma pessoa agressora. O que se pode fazer para não desconfiarmos de tudo e de todos, ainda mais quando, na maioria dos casos, a violência sexual é infligida por alguém do nosso círculo de confiança e, muitas vezes, na própria casa?
RA: As pessoas agressoras não se identificam de uma forma fácil e imediata, na medida em que são, na maior parte das vezes, pessoas conhecidas e próximas com quem se mantém uma relação de confiança. Podem ainda ser de ambos os sexos e ter todas as idades, profissões ou religiões. Assim, é fundamental não alertar as crianças apenas para o chamado 'stranger danger', ou seja, para os perigos associados aos estranhos, mas ajudá-las também a compreender que podem sentir-se desconfortáveis com alguém que conheçam e que, se isso acontecer, devem reagir e pedir ajuda. Este tipo de abordagem, quando feita de uma forma descontraída e ajustada à idade da criança, ajuda-a a interiorizar a ideia de que o seu corpo é seu e de que existem limites pessoais que todos devem respeitar. Ou seja, as crianças não passam a desconfiar de tudo e de todos, mas sim a sentir-se mais informadas face ao que pode ser uma situação segura ou insegura, e a saber o que fazer perante esta última. A literatura indica que as crianças que são envolvidas em programas de prevenção primária, numa lógica sistémica e de continuidade, sentem-se mais empoderadas e conscientes dos seus direitos.
No livro salientam que a descoberta da sexualidade faz parte do crescimento e que algumas atitudes das crianças e jovens fazem apenas parte desse processo. Contudo, algumas podem surgir depois destes serem vítimas de violência sexual. Como podemos distingui-las?
JNC: Efetivamente, existem os chamados comportamentos sexuais normativos, que fazem parte do crescimento saudável das crianças e jovens e que não devem ser encarados como um problema. Falamos, por exemplo, dos jogos de exibição, da masturbação (ocasional e sem penetração) e da curiosidade em relação à sexualidade. Todos nós passámos por isso. Por isso, e em primeiro lugar, devemos saber o que é normativo em cada faixa etária, para depois conseguirmos identificar eventuais comportamentos que requerem a atenção de um adulto e que poderão, eventualmente, relacionar-se com uma situação de violência sexual.
As situações traumáticas não se esquecem, mas podem ser elaboradas e a pessoa pode conseguir deixar o passado no passado
Ambos têm experiência de mais de duas décadas na área da violência sexual contra crianças e jovens e são membros do Grupo VITA. Ao longo destes anos devem ter lidado com várias centenas de casos. Como é que se recupera de uma situação destas? O que podem fazer os educadores para ajudar as suas crianças e jovens a recuperarem a sua vida?
RA: Trabalho nesta área há 27 anos e acompanhei, efetivamente, centenas (senão milhares) de casos. Trabalhar há tanto tempo com este tipo de situações também me tem permitido ver as crianças e os jovens crescerem e serem, hoje, adultos. E aquilo que sabemos é que as situações traumáticas não se esquecem, mas podem ser elaboradas e a pessoa pode conseguir deixar o passado no passado, deixando de interferir negativamente na forma como a pessoa se sente no presente ou se perspetiva no futuro.
O impacto das situações traumáticas não é linear e depende de diversas variáveis, não apenas da própria vitima, mas também da pessoa agressora e das características do abuso. De entre estas, o suporte social parece ser a variável que mais peso tem nos possíveis efeitos da situação abusiva – ou seja, uma reação de suporte, em que a vítima é acreditada, não culpabilizada e devidamente protegida e acompanhada tende a minimizar o impacto da situação abusiva.
É frequente as crianças sentirem que o adulto a quem revelam fica assustado, triste e confuso ou, ainda, que não acredita nelas
Estas crianças e jovens queixam-se de algum tipo de falta de apoio por parte dos educadores? Por exemplo, que não os ouvirem, falta de tempo, de abertura, etc.?
JNC: Como a Rute Agulhas já disse, a maior parte das situações de violência sexual ocorre no contexto intrafamiliar e, por esse motivo, muitas crianças e jovens sentem maior dificuldade em revelar, desde logo porque gostam da pessoa agressora e experienciam conflitos de lealdade. Ao mesmo tempo, nem sempre sentem a necessária abertura e disponibilidade por parte de outros adultos para acolherem uma revelação. É frequente as crianças sentirem que o adulto a quem revelam fica assustado, triste e confuso ou, ainda, que não acredita nelas, quer pelo que é dito, quer pela sua comunicação não verbal. Por isso, e de forma a proteger esse adulto, muitas crianças acabam por manter-se em silêncio ou dizem mesmo que afinal não aconteceu nada.
Também se verificam muitas situações em que os adultos escolhidos pelas crianças para a revelação (os chamados adultos de confiança) nem sempre reagem da melhor forma, duvidando daquilo que é revelado ("tens a certeza?") ou culpabilizando a criança ("o que é que fizeste para isso acontecer?", "porque é que não gritaste e fugiste?", "porque é que não contaste antes?").
Sabemos que é muito dificil escutar uma situação desta natureza, mais ainda quando a pessoa agressora é alguém que conhecemos bem, em quem confiamos e de quem nunca suspeitámos. É natural que quem ouça a criança experiencie muitas emoções ao mesmo tempo e, por isso, é fundamental tentar manter a calma e pedir ajuda às entidades competentes.
Um dos capítulos do livro é sobre 'reagir', ou seja, quando se desconfia ou se descobre que uma criança/jovem é abusado. Quais as principais dificuldades que os educadores sentem neste sentido? Há casos em que é mais difícil denunciar?
RA: Os pais que desconfiam de uma situação de violência sexual experienciam um conjunto de emoções, mais complexo quando a pessoa suspeita de agredir é alguém próximo e em quem confiam. Assim, é frequente sentirem tristeza, raiva, medo, ansiedade e, sobretudo, muita culpa - "como é que eu não percebi?", "onde é que eu falhei?", "porque é que eu não consegui proteger o meu filho?". Ao mesmo tempo, e quando a pessoa suspeita é alguém do seu círculo de confiança, podem sentir alguma dificuldade em acreditar na criança ou ainda ambivalência emocional – porque gostam da criança, mas também mantêm uma relação afetiva com a pessoa que é suspeita. Aqui, dou como especial exemplo as situações em que uma criança é abusada sexualmente por parte de um irmão ou irmã. Nestes casos, que considero aqueles que são os mais dolorosos e difíceis de gerir para os pais, estes experienciam uma ambivalência emocional muito significativa, e que facilmente conseguimos compreender.
Quando a suspeita recai sobre uma pessoa mais distante do ponto de vista afetivo, ou mesmo estranha, os pais sentem maior facilidade em acreditar e em pedir ajuda às entidades competentes.
Os dados dos últimos anos indicam que, em Portugal, os crimes sexuais contra crianças têm vindo a aumentar. Quais as razões, na vossa opinião, para isto estar a acontecer?
JNC: De uma forma geral, considera-se que podemos não estar perante um aumento do número de crimes sexuais cometidos contra crianças, mas sim a uma maior sensibilização e consciencialização da sociedade em relação ao tema.
O facto de a comunicação social estar também cada vez mais atenta a esta problemática tem contribuído para que esta seja mais falada, contrariando o segredo e o silêncio que a caracterizam.
Neste contexto, importa pensar sobre o que está realmente a ser feito no nosso país para prevenir as situações de violência sexual, que acompanhamento garante às vítimas e às suas famílias e, ainda, que intervenção existe com as pessoas que cometeram estes abusos ou pensam vir a cometer.
O Estado português tem ainda um longo caminho a percorrer no que respeita a políticas públicas e estratégias de prevenção e intervenção na área da violência sexual contra crianças e jovens
E Portugal tem ainda muitas fragilidades neste sentido?
JNC: A problemática da violência sexual contra crianças continua a ser um tabu nos dias de hoje, sendo que a maior parte das pessoas continua a pensar que prevenir estas situações significa falar de sexo com as crianças – e não significa.
Todos os contextos frequentados pelas crianças devem ter formação sobre esta problemática, contribuindo para a criação de ambientes de cuidado e proteção. Ao mesmo tempo, é fundamental aumentar os conhecimentos e desenvolver as competências das crianças.
Faltam estratégias por parte do Estado?
RA: O Estado português tem ainda um longo caminho a percorrer no que respeita a políticas públicas e estratégias de prevenção e intervenção na área da violência sexual contra crianças e jovens. É necessário desenvolver uma estratégia nacional, centrada nos vários níveis de intervenção – ou seja, criar estruturas especializadas de resposta para as vítimas e suas famílias, acessíveis em todo o território, mas também investir no desenvolvimento e implementação de programas de prevenção primária universal, dirigidos a todas as crianças e jovens, desde o ensino pré-escolar, numa lógica sistémica e de continuidade (envolvendo a família, a escola e os demais contextos onde existem crianças e jovens).
Por outro lado, é urgente pensar em estratégias de prevenção da reincidência, investindo em programas de intervenção especializados e multidisciplinares que sejam disponibilizados a todas as pessoas que já cometeram crimes de natureza sexual (sejam jovens ou adultos, em contexto prisional ou comunitário) ou que correm o risco de vir a cometer (por sentirem esse desejo ou fantasias).
Assim, parece-nos urgente que se pense na criação de uma estrutura nacional de resposta às situações de violência sexual contra crianças, com profissionais especializados que centrem a sua intervenção em diferentes eixos, nomeadamente, a prevenção, a intervenção e a capacitação. No contexto da Igreja, é esta a missão do Grupo VITA.
Acham que com a 'explosão' dos casos de abuso sexual na Igreja houve mais denúncias (mesmo que não tenham sido abusados no seio da igreja)?
RA: De acordo com a informação dada pelo Dr. Carlos Farinha, diretor nacional adjunto da PJ e colaborador neste livro, a mediatização do tema dos abusos sexuais no contexto da Igreja tem contribuído, não apenas para uma maior sensibilização face ao mesmo, como também para um incentivo ao processo de denúncia de situações de violência sexual contra crianças, ocorridas noutros contextos.
Os abusos sexuais cometidos no seio da igreja são dos casos mais graves ou complexos com que já lidaram?
RA: Não podemos dizer que sejam os mais graves, na medida em que a gravidade ou o impacto de uma situação sexualmente abusiva depende de diversas variáveis, e não apenas do contexto onde ocorreu. No entanto, e tendo em conta todas as situações que o Grupo VITA tem vindo a acompanhar desde há ano e meio, constata-se que o facto do abuso sexual ter ocorrido num contexto sentido como sagrado, e por alguém que era percecionado como um representante de Deus, parece agravar o impacto, nomeadamente, ao nível das crenças religiosas das vítimas – que, não raras vezes, perdem a sua fé e deixam de acreditar em Deus, o que pode colocar em causa o próprio sentido da vida.
Defendem que devia haver um estudo global sobre os abusos sexuais em Portugal. Como é que isso poderia ser feito?
RA: É urgente realizar em Portugal um estudo de prevalência da violência sexual contra crianças (aqui entendidas como todos os menores de 18 anos de idade), abrangendo todas as pessoas e os diversos contextos onde essa mesma violência possa ter ocorrido (i.e., na família, na escola, no desporto, na Igreja, no mundo digital, etc.).
Em Portugal apenas temos acesso as dados de incidência, publicados anualmente no RASI, que correspondem aos novos casos sinalizados e que, como sabemos, serão muito provavelmente apenas uma pequena parte da realidade. A prevalência permite-nos estimar o número de casos existentes num dado momento e, consequentemente, melhor planear políticas e estratégias de prevenção e intervenção.
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