Ao fim de 31 anos de experiência profissional como advogado, Luís Menezes Leitão decide candidatar-se a bastonário da Ordem dos Advogados (OA) com o propósito de devolver à profissão a “dignidade e segurança” que lhe tem faltado nos últimos tempos.
As críticas, essas, são dirigidas ao sistema, ao atual bastonário, aos solicitadores e ao Estado, quem acusa de estar a “enriquecer” de forma “injustificada à custa dos advogados”.
Quanto às preocupações, estas não dizem apenas respeito a quem já é advogado. Também os aspirantes a causídicos, e mais concretamente o seu acesso à profissão, figuram na lista de ações a tomar quando – e se – Luís Menezes Leitão for eleito.
Foi contra a introdução do voto eletrónico nas eleições. Porquê?
Porque no início deste ano houve uma situação extremamente complexa com o envio de notas de crédito de milhões na página eletrónica do e-fatura, relativamente à quase totalidade dos advogados, e isso lança algumas dúvidas sobre a viabilidade que o voto eletrónico pode ter. Além do mais há apenas uma única empresa indicada no regulamento, quando habitualmente é sempre com duas empresas, e isso suscitou algumas dúvidas. Mas neste momento está decidido e iremos fazer as eleições com o voto eletrónico, embora não me pareça ter sido a melhor solução devido à falta de preparação que isto teve.
Sempre defendi que o bastonário não deve receber remuneração pelo cargo. O bastonário deve continuar a ser advogado
E se for eleito vai rever esta situação?
Nós temos sempre de ponderar. Se o processo correr bem será ótimo para todos, senão teremos que ver o que se poderá fazer quanto a este aspeto. Não tenho uma posição de princípio contra o voto eletrónico, a nossa posição deriva das fragilidades que se têm verificado nos últimos tempos e que podem lançar alguns problemas. A única vez que houve voto eletrónico na OA foi nas eleições para o Congresso e houve pessoas que disseram que não tinham conseguido votar.
Também disse que vai abdicar do salário de bastonário. Porquê?
Sempre defendi que o bastonário não deve receber remuneração pelo cargo. Há um princípio geral de que ninguém, por ter um cargo na OA, pode ser remunerado. Mas depois introduziu-se uma exceção para o bastonário…
E por que razão o bastonário não deve ser remunerado?
Porque um bastonário que esteja apenas a viver do salário da OA – que é pago com as quotas dos advogados – deixa de exercer e, portanto, acaba por se alhear dos problemas dos advogados. O bastonário deve continuar a ser advogado. Foi assim durante décadas e décadas e é uma tradição que quero voltar a instituir. Não acho que seja correto uma candidatura a bastonário ser uma candidatura a um emprego remunerado.
Pretendemos voltar a devolver o respeito e a dignidade aos advogados, algo que se tem perdido com imensas atitudes de desconsideração para com estes profissionaisQual é o seu plano para a Ordem para o próximo triénio?
O nosso plano de ação passa pelo respeito, dignidade e segurança para a advocacia. Nós pretendemos voltar a devolver o respeito e a dignidade aos advogados, algo que se tem perdido com imensas atitudes de desconsideração para com estes profissionais.
A que atitudes se refere?
Ao facto de não se respeitar os atos próprios dos advogados, ao facto de hoje em dia alguns tribunais já estarem a pedir senhas de entrada que os advogados têm que preencher como se fossem uma qualquer pessoa que se dirige ao tribunal e, inclusivamente, ao facto de não haver muitas condições de trabalho para os advogados, designadamente a falta de lugares de estacionamento nos tribunais, e tudo o resto.
E ao que se refere quando fala na segurança dos advogados?
Os advogados têm uma grande falta de segurança, não só pelo facto de muitos outros profissionais estarem a atuar de uma forma que se pode considerar indistinta com a advocacia, não havendo uma proteção dos atos próprios dos advogados, como também os advogados estão neste momento amarrados a um sistema de previdência que funciona de uma forma totalmente insegura.
Como é que funciona o sistema de previdência?
Primeiro estabeleceu-se que as contribuições para a previdência deviam subir cada vez que subisse o salário mínimo, o que levou imensos advogados a deixarem de conseguir pagar essas contribuições. Agora estabeleceu-se que estas contribuições variam todos os anos com base num desconto que tem de ser proposto pela Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS) ao Ministério da Justiça (MJ), o que leva a que, por exemplo, no próximo ano estejam já a ser anunciadas subidas elevadíssimas que a grande parte dos advogados não tem condições para suportar com o seu rendimento.
Refere-se então a uma insegurança financeira.
Sim. Até porque mesmo pagando estes valores elevadíssimos para a previdência, os advogados não têm proteção na doença ou na parentalidade e nós queremos alterar tudo isso e permitir que a advocacia funcione de forma a que as pessoas tenham segurança e não vivam todos os dias a pensar no que pode acontecer no dia de amanhã.
Não deve haver descontos sem rendimentos. Neste momento, os advogados, quer ganhem ou não ganhem absolutamente nada, têm que ter sempre um desconto para a previdênciaComo é que deveria funcionar o sistema de contribuições para a CPAS?
Defendemos que não deve haver descontos sem rendimentos. Neste momento, os advogados, quer ganhem ou não ganhem absolutamente nada, têm que ter sempre um desconto para a previdência, o que não faz sentido. E temos também de assegurar que não sejam apenas os advogados a sustentar a previdência.
Quem mais deve ter essa função?
A procuradoria. A Segurança Social tem outras fontes de rendimento que não as contribuições dos beneficiários. Já os advogados estão agora sozinhos a sustentar as pensões dos seus colegas, uma vez que foi retirada à previdência uma receita que vinha das custas judiciais. Isto não é justo e vamos bater-nos para que a CPAS volte a ter a receita da procuradoria, que é essencial para assegurar a sua sustentabilidade.
Quando falou nos atos próprios e no facto de existirem outros profissionais a desenvolver uma atividade “indistinta” da advocacia referia-se aos solicitadores?
No que diz respeito aos solicitadores nós criticamos o facto de o Governo ter pretendido – e sem a oposição da OA – abrir o sistema de acesso ao Direitos aos solicitadores quando os advogados têm – com todo o respeito pelos solicitadores – uma formação maior. A OA retirou os advogados estagiários do acesso ao Direito quando estes podem praticar os mesmos atos dos solicitadores. É uma medida altamente indesejável à qual, infelizmente, a OA não se opôs.
Mas é uma medida que ainda não foi aprovada no Parlamento.
Não, mas não se sabe o que vai acontecer na próxima legislatura. Temos de estabelecer que a advocacia é uma profissão regulada, que tem atos próprios que lhe estão reservados e que no quadro do acesso ao direito devem ser apenas os advogados a trabalhar nesta área.
Por falar em advogados estagiários. O estágio tem a duração de um ano e não é remunerado, pelo menos não é obrigatório que o seja. Qual é a sua posição quanto a isto?
Não, não é e infelizmente também não o tem sido. A nosso ver devemos procurar que haja alguma atribuição de bolsas através de institutos púbicos, como o IEFP, porque efetivamente é difícil escolher esta profissão e estar tanto tempo sem poder auferir qualquer remuneração. Procuraremos obter um apoio adequado aos estagiários para alterar esta situação que é de facto penalizadora.
Além de ser penalizadora para os estagiários não considera que é também penalizadora para a própria advocacia, uma vez que estas dificuldades podem afastar as pessoas da profissão?
Sim e por isso é que queremos criar estas bolsas. Não nos parece justo que a entrada na advocacia fique reservada a quem tem condições para esperar tanto tempo para obter uma remuneração.
O exame pode ser melhorado, mas não podemos prescindir desta avaliação. E não haja ilusões a esse respeito: não é qualquer pessoa que, por ter um curso de Direito, está em condições de ser advogadoE no que diz respeito ao exame à Ordem?
A forma como a OA está a administrar a formação no âmbito do estágio pode e deve ser melhorada, mas não nos parece que seja possível prescindir de um exame destinado a testar se o candidato está ou não em condições de exercer a profissão de advogado. O exame pode ser melhorado, mas não podemos prescindir desta avaliação. E não haja ilusões a esse respeito: não é qualquer pessoa que, por ter um curso de Direito, está em condições de ser advogado.
Como vê o facto de alguns advogados terem uma forte presença mediática, nomeadamente a comentar casos de Justiça? Pode, de alguma forma, pôr em causa a dignidade que defende para a profissão?
Depende muito do que ocorre em termos de comentário. O facto de aparecerem advogados a discutir processos pendentes é totalmente contrário ao nosso estatuto. O advogado não deve contribuir para a discussão pública de questões profissionais. Não nos parece muito adequado que precisamente quando o próprio advogado que tem o processo não aparece publicamente, que apareçam outros advogados a falar sobre esse mesmo processo. Se for apenas uma situação de referência a questões jurídicas finais aí já não pomos qualquer objeção, mas de facto parece-me, por vezes, que há discussões de processos que são feitas em termos que não serão os mais adequados.
Falando num âmbito mais geral da Justiça. Os portugueses veem-na como morosa e nem sempre justa naquelas que são as decisões finais. O que se deve mudar para alterar esta relação entre o cidadão e a Justiça?
A Justiça é de facto muitas vezes morosa e uma Justiça tardia não é uma verdadeira Justiça. Há que assegurar que seja feita uma Justiça a tempo e horas e que seja explicado, de uma forma adequada, quais foram as razões das decisões, inclusivamente numa linguagem clara. Quanto à eficácia do sistema parece-nos de facto insustentável que esteja alguém a ser objeto de um processo durante anos e anos sem que haja uma decisão.
Como é que se resolve esta questão da morosidade?
Talvez se resolva fazendo com que os processos sejam feitos de uma forma mais célere. Talvez não se justifique a existência de mega-processos quando, em termos de investigação, já existem indícios suficientes o processo poder poder prosseguir. Não é de facto aceitável que passem anos e anos sem que haja julgamento.
E os advogados têm um papel a desempenhar na construção da imagem que os cidadãos têm da Justiça?
Com certeza que sim. A sociedade tem que perceber que os advogados estão no tribunal para a defesa do constituinte e é fundamental que haja uma boa colaboração entre advogados e magistrados. Mas, a meu ver, essa imagem também se constrói com uma intervenção maior da OA que, nos últimos tempos, designadamente no mandato deste bastonário, tem andado bastante afastada.
Como por exemplo?
Por exemplo esta alteração à lei da organização do sistema judiciário e também a questão dos solicitadores. A OA limitou-se a fazer um pequeno parecer e, praticamente, concordou com tudo, não chamando a atenção para imensos aspetos que eram importantíssimos. Neste quadro tem falhado a intervenção da OA junto do Ministério da Justiça.
Somando as elevadas custas judiciais que existem e a remuneração tão baixa que está a ser paga aos advogados, o que nós estamos a assistir é a um enriquecimento injustificado do Estado à custa dos advogadosA questão dos advogados oficiosos preocupa-o?
Preocupa-me imenso. Temos situações de advogados que estão com uma tabela de remunerações que não é atualizada há 15 anos e tivemos agora a notícia de que o Ministério Público poupou 13 milhões no apoio judiciário. Somando as elevadas custas judiciais que existem e a remuneração tão baixa que está a ser paga aos advogados, o que nós estamos a assistir é a um enriquecimento injustificado do Estado à custa dos advogados.
Mas há uma lei que obriga à atualização anual da tabela de remunerações.
Sim, desde 2018. Devia ter sido feita uma atualização em dezembro do ano passado, mas a lei não está a ser aplicada. Os advogados não viram qualquer iniciativa para que as remunerações fossem atualizadas, mas viram ser feita uma proposta para alargar o acesso ao Direito aos solicitadores…
Além da questão do valor salarial há ainda o facto da morosidade com que o mesmo é pago.
O que é bastante inadequado o facto de só se pagar quando o processo se conclui, quando muitas vezes temos processos que, devido à morosidade da Justiça se dilatam, e o que sucede é que o advogado está a trabalhar praticamente todos os dias e não está a receber. Não é aceitável que um advogado receba a remuneração meses depois do trabalho, especialmente quando é o Estado a pagar, que é quem devia dar o exemplo.
Disse no início de agosto que o facto de o Presidente da República não ter exercido, uma única vez, o seu poder de fiscalização da constitucionalidade das leis desvaloriza o papel do Tribunal Constitucional (TC). Entretanto, Marcelo anunciou o envio para o TC do diploma sobre a procriação medicamente assistida. Está reposta a normalidade?
Não é normal que o tenha feito três anos e meio depois de ter tomado posse. Esperemos que isto implique uma evolução na atuação do PR, que passe a exercer com mais frequência a fiscalização da constitucionalidade. No entanto, isto ocorreu com a lei da procriação medicamente assistida e não com as alterações ao Código do Trabalho, em especial a que dilata o período experimental para 180 dias. Esta alteração já tinha sido julgada inconstitucional pelo TC em 2008 e foi agora promulgada pelo PR com argumentos que não são propriamente argumentos convincentes do ponto de vista constitucional.
A que argumentos se refere?
Designadamente ao argumento de que houve um acordo de concertação social, como se o acordo de concertação social se pudesse sobrepor à Constituição da República Portuguesa, mas também ao argumento de que se está a prever um arrefecimento da economia, como se isso levasse a que trabalhadores pudessem ser sujeitos a períodos experimentais extremamente dilatados.
Esperava outra postura do PR, tendo em conta que é professor catedrático de Direito?
Não vejo que se relacione com essa questão, mas há quem tenha dito que o PR, por ser professor de Direito Constitucional, não tem propriamente dúvidas. Mas a verdade é que é a posição do TC que prevalece e, como já se viu várias vezes, considerou inconstitucionais leis promulgadas pelo PR.
Face ao exposto, qual é o maior desafio da advocacia nos dias de hoje?
O desafio é permitir que continue a ser uma profissão jurídica com o seu quadro de atos próprios e com a dignidade, respeito e segurança para os seus membros.
Enumere três razoes para os advogados o elegerem como bastonário.
Em primeiro lugar, eu sou advogado desde 1988, sou professor catedrático mas tenho estado sempre nos tribunais e conheço perfeitamente a realidade dos tribunais e sei perfeitamente quanto a advocacia se degradou desde que comecei a exercer.
Por outro lado, tenho os conhecimentos que considero adequados para poder discutir os temas que interessam aos advogados e, portanto, ter uma posição de diálogo com todos os poderes públicos que a OA deve ter para evitar que os advogados sejam menosprezados.
Por último, também tenho experiência de dedicação à OA: já fui vice-presidente do Conselho Regional de Lisboa, fui presidente do Conselho Superior, conheço muito bem a OA, os colegas que lá têm estado e, por isso, penso estar em condições de exercer adequadamente o mandato.