Direito à blasfémia mais difícil que nunca, cinco anos após Charlie Hebdo

A tradição francesa de irreverência em relação à religião está a perder-se, nos 'media' como nas redes sociais o "regresso do religioso" reforçou a autocensura e limitou a blasfémia, criticam os seus defensores.

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Lusa
27/08/2020 16:55 ‧ 27/08/2020 por Lusa

Mundo

Charlie Hebdo

O julgamento dos cúmplices do atentado de 2015 à revista satírica Charlie Hebdo, porta-estandarte da irreverência em França, que causou 12 mortes, inicia-se no dia 02 de setembro.

Para o advogado da revista, Richard Malka, as figuras políticas de todos os quadrantes que não apoiavam claramente a Charlie Hebdo antes do ataque, no seu direito de criticar a religião, são "cúmplices intelectuais" dos irmãos Kouachi, que realizaram o massacre.

"O motivo do crime é a vontade de proibir as críticas a Deus, logo a liberdade de expressão, logo a liberdade, ponto final", declarou Richard Malka numa entrevista ao semanário Le Point, citado pela agência France-Presse.

O caso Mila, uma adolescente alvo de ameaças de morte por ter criticado violentamente o Islão, trouxe à tona, em janeiro, os desacordos ou hesitações dos franceses sobre o "direito à blasfémia".

Segundo uma sondagem realizada em fevereiro para a Charlie Hebdo, apenas 50% dos franceses são favoráveis ao "direito de criticar, mesmo de forma ultrajante, uma crença, símbolo ou dogma religioso". Metade é contra, nomeadamente os mais jovens, os muçulmanos e os protestantes.

"Para onde foi a esquerda libertária, universalista e secular?", questiona Richard Malka. "Porquê este constrangimento? Pode ser-se ferozmente antirracista, como Charlie sempre foi, e radicalmente blasfemo. É até recomendado", adianta.

A conta humorística na rede social Twitter "Deus oficial" (@_dieuoff), com 1,2 milhões de seguidores, foi denunciada em julho por centenas de utilizadores, que a consideram blasfematória e pedem o seu desaparecimento.

O titular da conta assegura, no entanto, que este Deus (mais católico) "não critica qualquer religião". Considerando que "o humor perdeu força nos últimos anos", faz questão de ser discreto e arranjou um consultor que relê as piadas antes da sua publicação.

A França foi a primeira nação da Europa a abolir o crime de blasfémia, após a revolução de 1789. A lei Pleven de 1972 precisa que não se pode insultar uma pessoa ou grupo de pessoas devido à sua religião. Mas insultar as religiões ou um deus continua a ser possível.

Em todo o mundo a acusação de blasfémia tornou-se uma arma frequente nas mãos de religiosos desde o apelo à morte do escritor Salman Rushdie lançado pelo República Islâmica do Irão em 1989.

No Paquistão, a cristã Asia Bibi, inicialmente condenada à morte por blasfémia, acabou por ser ilibada após anos na prisão, mas um cidadão norte-americano foi assassinado em julho num tribunal onde comparecia por blasfémia.

Em maio, na Hungria, um caricaturista foi ameaçado pelo partido no poder devido a um desenho de Jesus, tendo o governo explicado depois que a formação "defendia os direitos dos cristãos".

Noutros lugares descobre-se a autocensura: a emissora da série animada norte-americana South Park retirou do seu catálogo 'online' os cinco episódios que evocam o profeta do Islão Maomé.

A professora de teologia política Anastasia Colosimo explica que "desde o final da década de 1970" se vive "um regresso do religioso que criou oposições extremamente fortes"

"Há uma vontade de encontrar uma identidade, um sentido num mundo considerado insano", diz, adiantando que "o anticlericalismo ou ateísmo é cada vez mais considerado ofensivo (...) já não é o sentido da história".

O relator geral do Observatório da Laicidade, Nicolas Cadène, concorda ao observar que existe "um reforço do recurso ao religioso".

"A sociedade continua a secularizar-se, por isso há uma vontade da parte de alguns crentes de uma reafirmação muito forte. E cada vez têm mais dificuldade em aceitar críticas a esta identidade", sublinhou.

Anastasia Colosimo assinala que "a liberdade de expressão não existe para proteger discursos suaves e simpáticos", mas sim "para proteger os discursos que ofendem, chocam ou preocupam".

"Se retiramos esses discursos do espaço público, acabaremos por encontrá-los doutra forma, em palavras ainda mais violentas ou em atos", alerta.

Nicolas Cadène considera que "é importante educar sobre o que temos o direito de dizer ou não", em particular na escola, com educação moral e cívica "que deve favorecer o confronto de ideias entre os alunos, com respeito mútuo".

 

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