"À medida que fui modernizando, as máquinas iam saindo e comecei a achar que tinha ali um armazém cheio daquilo, tanto assim que vendi uma boa porção desse equipamento para Portugal, para uma sucata", começou por explicar, em conversa com a Lusa, Joaquim Liberal Spencer, 90 anos, antigo administrador e ainda proprietário, juntamente com a família, da emblemática Sociedade Ultramarina de Conservas (Sucla).
A ideia do museu, que hoje retrata a evolução da atividade conserveira e das pescas em Cabo Verde, foi ganhando forma no pensamento de Joaquim Liberal Spencer - que 'herdou' o trabalho na fábrica do pai - ainda no período em que geria a Sucla, função que há quase 20 anos passou para o filho. Contudo, não passava então além de limpar e distribuir as máquinas sem uso pelo armazém da conserveira, ainda hoje a maior empregadora da ilha de São Nicolau e uma das mais antigas empresas do arquipélago.
"É um pacto de aliança, entre o privado e o Estado", sublinha sobre o sonho realizado do seu museu, sem esconder: "Hoje é património aqui da população de São de Nicolau".
Tudo porque à ideia do então ministro da Cultura, Mário Lúcio (de 2011 a 2016), de criar um museu em Tarrafal de São Nicolau, dedicado ao mar e à pesca, atividade emblemática para aquela ilha, Joaquim Spencer respondeu prontamente com a cedência do edifício que serviu de residência ao fundador da Sucla, o português António Cadório, contígua à fábrica, naquela vila.
"Eu disse-lhe: Se o museu é para ficar no Tarrafal, eu já lhe arranjo terreno, agora mesmo. De maneira que se pode começar o museu já amanhã", recroda.
O museu nasceria em 2015, numa parceria com o Governo de Cabo Verde, através do Instituto do Património Cultural e do Arquivo Histórico Nacional, que acompanham o espólio, e com o apoio do Museu da Baleia da cidade norte-americana de New Bedford, representativa da importante comunidade cabo-verdiana que no século passado ali se dedicou à atividade baleeira.
"Este prédio nasceu na altura da fome [devido à seca em São Nicolau]", recorda, sobre o edifício que acolhe o museu e que retrata também as dificuldades naquela ilha, construído há quase um século com materiais de outras edificações.
"Em troco de um punhado de farinha", explica, desolado pelas dificuldades que sempre conheceu em São Nicolau.
Hoje, depois de concluída a segunda fase, o museu tentar fazer uma interpretação entre o antigo e atual processo de conserva e da própria memória coletiva ligada à pesca. Além dos utensílios da pesca da baleia, em destaque no espaço ou não fosse esta uma atividade que ao longo de décadas movimentou centenas de cabo-verdianos, sobretudo para baleeiros norte-americanos, o museu retrata a evolução da conserveira, incluindo o tempo em que tudo era produzido localmente, até mesmo as latas, com máquinas especialmente preparadas localmente, com poucos recursos, para esse efeito.
"Até há uns anos as latas também eram feitas aqui. Depois, quando tomei conta [da administração da fábrica, na década de 1990], 'botei' conta do prejuízo que tinha na confeção das latas, acabei com isso", assume, explicando que acabou por passar a importar as latas, concentrando a atividade no que de melhor ali faziam. As conservas, sobretudo de atum, propriamente ditas.
"De maneira que as maquinetas foram postas de parte e estão lá dentro na exposição", afirma.
Sem rodeios, assume também que o museu, que obriga a uma visita prolongada dado o nível de detalhe, foi o "concretizar de um sonho" e por ainda hoje passa todos os dias, apesar da idade.
"Vou lá ver se está limpinho", atira.
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