Deslocação forçada de civis para Rússia pode ser crime contra Humanidade
A organização de defesa dos direitos humanos Amnistia Internacional acusa Moscovo de crimes de guerra ao transferir à força civis da Ucrânia para a Rússia, considerando que a situação pode mesmo constituir um crime contra a Humanidade.
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Mundo Ucrânia/Rússia
Num relatório hoje publicado com o título "Como um Comboio-Prisão", a organização não-governamental (ONG) Amnistia Internacional denuncia a "realocação e deportação à força de civis de áreas ocupadas da Ucrânia", explicando que as transferências separaram muitas crianças das suas famílias e que há neste momento um número elevado de "idosos, pessoas com deficiência e menores" a lutar para deixar o território russo.
No relatório, a organização internacional divulga relatos de alguns civis que disseram ter sido forçados a passar por processos abusivos de seleção -- conhecidos como 'filtragem' -- que por vezes resultaram em prisões arbitrárias, torturas e outros maus-tratos.
"Separar as crianças das suas famílias e forçar a população a deslocar-se para locais a centenas de quilómetros das suas casas é mais uma prova do sério sofrimento que a invasão russa está a causar à população civil ucraniana", sublinha a secretária-geral da Amnistia Internacional, Agnès Callamard, citada no documento.
"Desde o início desta guerra de agressão contra a Ucrânia - que constitui em si mesma uma violação do Direito Internacional -, as forças russas atacaram indiscriminadamente e mataram civis ilegalmente, destruindo inúmeras vidas e dilacerando famílias. Ninguém foi poupado, nem mesmo os meninos e meninas", refere.
"A deplorável tática russa de realocação forçada e deportação é um crime de guerra. A Amnistia Internacional considera que a situação deve ser investigada como crime contra a Humanidade", sublinha a responsável.
Além disso, defende Agnès Callamard, "todos aqueles que foram sujeitos a realocação forçada e ainda estão detidos ilegalmente devem ser autorizados a sair" e "os menores sob custódia russa devem ser reunidos com as suas famílias e o seu regresso às áreas controladas pelo Governo ucraniano deve ser facilitado".
Por fim, frisa, "todos os responsáveis por estes crimes devem ser responsabilizados".
Para realizar o relatório, a ONG entrevistou 88 pessoas da Ucrânia, a maioria das quais civis de Mariupol, que descreveram situações nas quais não tinham escolha real a não ser ir para a Rússia ou para outras áreas ocupadas pelas forças russas.
As pessoas detidas durante a "filtragem" disseram à Amnistia Internacional ter sido submetidas a tortura e outros maus-tratos, incluindo espancamentos, choques elétricos e ameaças de execução, sendo que, a outros, foram negados alimentos e água.
No início de março de 2022, a cidade de Mariupol, no sudeste da Ucrânia, foi cercada por forças russas, impossibilitando o abandono da região pelas populações civis.
A cidade foi submetida a bombardeamentos quase constantes e deixou de haver água canalizada, aquecimento e eletricidade.
Algumas semanas mais tarde, milhares de pessoas conseguiram permissão para sair, mas como a Rússia ocupou a cidade, deslocou à força parte da população civil dos bairros sob seu controlo para a chamada República Popular de Donetsk (RPD), reconhecida apenas pela Rússia.
Uma dessas pessoas foi Milena, de 33 anos, que contou à Amnistia Internacional a sua experiência ao tentar deixar Mariupol.
"Começámos a fazer perguntas sobre a saída, para onde poderíamos ir (...). [Um soldado russo] disse-me que só poderia ir para a RPD ou para a Rússia. Outra jovem perguntou sobre outras possibilidades, por exemplo, para a Ucrânia. O soldado interrompeu-a e disse: 'Se não quer ir para RPD ou para a Federação Russa, vai ficar aqui para sempre'", relata Milena, citada no relatório.
O marido de Milena, um ex-fuzileiro naval das forças armadas ucranianas, foi preso logo após cruzar a fronteira com a Rússia e ainda não foi libertado.
"As leis do conflito armado proíbem realocações em massa ou individuais de natureza forçada, bem como deportações do território ocupado de pessoas protegidas", lembra a Amnistia Internacional no relatório.
Um outro caso relatado é o de um menino de 11 anos, separado, em abril, da sua mãe durante a "filtragem" e detido pelas forças russas.
"Levaram a minha mãe para outro local e começaram a interrogá-la. Disseram-me que me iam separar da minha mãe (...) e eu comecei a chorar (...). Eles não disseram nada sobre o sítio para onde iam levar a minha mãe e eu nunca mais ouvi falar dela", conta a criança.
"Várias pessoas disseram que, uma vez na Rússia, sentiram-se pressionadas a solicitar cidadania russa", processo que foi simplificado para menores suspeitos de serem órfãos ou separados dos seus pais e para algumas pessoas com deficiência, segundo afirma a ONG de defesa dos direitos humanos.
"Isso foi feito para facilitar a adoção dessas crianças por famílias russas, o que é contrário ao Direito Internacional", acusa a Amnistia Internacional.
"Estas ações indicam a existência de uma política russa deliberada em relação à deportação de civis, incluindo crianças, da Ucrânia para a Rússia, sugerindo que, além do crime de guerra de deportação e transferência ilegais, a Rússia também terá cometido crimes contra a Humanidade", conclui a ONG.
A ofensiva militar lançada a 24 de fevereiro pela Rússia na Ucrânia causou já a fuga de mais de 13 milhões de pessoas -- mais de seis milhões de deslocados internos e mais de 7,7 milhões para países europeus -, de acordo com os mais recentes dados da ONU, que classifica esta crise de refugiados como a pior na Europa desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
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