Nas duas últimas semanas sucederam-se as informações, internas e externas, sobre a inevitável demissão do chefe de estado-maior, general Valeri Zaluzhny, de início negadas pelo gabinete do Presidente Volodymyr Zelensky e pelo Ministério da Defesa.
Apesar das contínuas informações sobre um pedido de demissão apresentado pelo chefe de Estado, com o general a recusar uma nova função de conselheiro militar, a decisão polémica ganha força, numa situação em que as forças ucranianas adotaram uma estratégica defensiva na frente de combate e quando permanece bloqueada pelo Congresso nova e decisiva ajuda militar norte-americana.
Eis alguns pontos essenciais sobre os motivos para a crise em Kyiv e os riscos que acarreta:
O prestígio de Zaluzhny
Zelensky designou Zaluzhny para a liderança das Forças Armadas ucranianas em julho de 2021, quando o país estava envolvido desde há sete anos em combates no leste contra as milícias separatistas russófonas locais, e quando prosseguia a concentração de tropas da Rússia junto à fronteira comum.
O general que conteve o plano inicial do Kremlin de garantir em poucos dias a capitulação de Kyiv -- na sequência da invasão em larga escala desencadeada em 24 de fevereiro de 2022 --, ainda é considerado um "ícone" para grande parte da população e em particular entre os soldados, que têm manifestado apreensão pela sua eventual substituição.
O general que inicialmente se destacou na liderança da operação militar contra os separatistas pró-russos do Donbass (leste da Ucrânia) no início da guerra civil em 2014, ainda parece garantir uma quota de popularidade a rondar os 90%, inatingível para os seus eventuais sucessores: o chefe dos serviços de informações militares, Kyrylo Budanov, ou o comandante das tropas terrestres, Oleksandr Syrsky.
As divisões entre Zelensky e Zaluzhny
A rivalidade entre o chefe de Estado -- que mantém a sua popularidade a nível externo -- e o chefe das Forças armadas poderá ser uma das causas do atual braço de ferro, mas não a única. A degradação da situação no terreno e a complexa questão da mobilização militar também acentuou as divergências entre os dois protagonistas.
Em 26 de dezembro passado, um semana após a conferência de imprensa anual de Zelensky, Zaluzhny convocou os 'media' para um raro encontro e na sequência de acusações, mais ou menos veladas, de aliados políticos do Presidente que o responsabilizavam pelo falhanço da contraofensiva militar do verão de 2023.
Em 19 de dezembro, na sua conferência de imprensa anual, Zelensky -- cuja popularidade tem registado crescente erosão -- tinha afirmado não estar convencido dos pedidos do estado-maior de mobilizar "450.000 a 500.00" homens para substituir os militares que combatem há dois anos na frente.
Zelensky ainda não assinou a ordem de mobilização, antes optando por proceder a ampla remodelação no aparelho de Estado, ainda com contornos por definir.
Na quarta-feira, o parlamento de Kyiv aprovou finalmente em primeira leitura o controverso projeto-lei sobre mobilização militar, mas o processo deve prolongar-se por várias semanas até à promulgação por Zelensky.
No seu raro contacto com os 'media' no final do ano passado, Valeri Zaluzhny indicou não ter dado qualquer número sobre a amplitude da mobilização, recordou que a decisão cabe ao poder político e criticou o sistema de recrutamento em vigor, incapaz de renovar num período apropriado as forças destacadas há dois anos na linha da frente - outra crítica a Zelensky, que no início do mês tinha demitido todos os responsáveis regionais dos centros de recrutamento, agravando a desorganização do aparelho de mobilização.
Zaluzhny também se opôs ao projeto-lei do Governo sobre a rotação das unidades e lamentou a diminuição do apoio militar ocidental, neste caso uma preocupação comum a Zelensky.
As posições públicas de Zaluzhny
Após ter enunciado em 01 de novembro diversos problemas operacionais na entrevista à revista The Economist -- acompanhado pela publicação quase simultânea de um ensaio militar --, o chefe máximo das Forças Armadas advertiu que deveria ser evitada em 2024 uma "guerra de posições" estática, vantajosa para a Rússia pela sua superioridade numérica, suscitando forte ressentimento no país.
No essencial, o general considerou que o "alto nível tecnológico" utilizado no campo de batalha conduziu a um impasse a referiu a necessidade de um "sobressalto" tecnológico, ajuda suplementar dos aliados e reforma do sistema de mobilização.
A reação da presidência ucraniana foi imediata. Em 04 de novembro Ihor Jovka, chefe-adjunto do gabinete do Presidente, criticou o ensaio do general, ao afirmar que um militar deveria evitar essas observações "porque desta forma se facilita o trabalho do agressor", uma posição também apoiada por Zelensky que recusou qualquer "impasse na frente".
A unidade em causa
A preservação da "unidade do Governo, do povo e do Exército" tem sido um apelo recorrente, e uma fratura neste 'puzzle' poderá ser fatal para as ambições de Kyiv em "reconquistar todo o território e expulsar os invasores".
Uma preocupação partilhada por diversos analistas políticos, que têm alertado sobre a necessidade de preservar a unidade e coesão entre os militares e os dirigentes civis, porque "ninguém apoiará um país cujos dirigentes militares e políticos não estão em sintonia", como assinalou recentemente Petro Burkovskyy, diretor de um centro de reflexão citado pelo diário Le Monde.
Outros comentadores locais têm acentuado uma certa forma de "inveja política" proveniente do gabinete presidencial face a Zaluzhny, devido à sua maior popularidade, e com algumas vozes a admitirem que poderia ser "um futuro bom Presidente".
O crescente envolvimento direto de Zelensky na aprovação das decisões militares também terá contribuído para o diferendo entre o chefe de estado-maior e o comandante-em-chefe supremo, um atributo do chefe de Estado.
No inicio de dezembro, um artigo sobre as relação entre os dois homens publicado no jornal Ukrainska Pravda revelava que o Presidente tinha "criado vias paralelas de comunicação com comandantes de diversos ramos das Forças Armadas", em particular com o comandante das forças terrestres, Oleksandr Syrsky e o chefe da Força Aérea, Mykola Oleshchuk, para "contornar" o chefe de estado-maior.
Estas críticas foram acompanhadas por alterações em diversas chefias militares com a demissão em novembro, imposta pela presidência e sem explicações, do comandante das forças de operações especiais, Viktor Khorenko, e da comandante das forças médicas do Exército ucraniano, Tetiana Ostachtchenko. Em paralelo, diversos deputados do Servidor do Povo, o partido de Zelensky e com a maioria absoluta no Verkhovna Rada (parlamento), apelavam à demissão de Zaluzhny.
Neste contexto, o analista político Petro Burkovskyy citado pelo Le Monde, assinalou que após o fracasso na contraofensiva do verão de 2023, "os burocratas procurarem qualquer um para responsabilizar" e referiu-se a duas estratégias: "ou podem partilhar as responsabilidades, ou transpor essa responsabilidade para outros. Um debate que decorria na administração presidencial".
Os riscos da substituição
Após uma avalanche de publicações nos 'media' e nas redes sociais sobre o tema, Zelensky admitiu finalmente esta semana que prepara uma ampla remodelação de diversos altos responsáveis, incluindo o chefe das Forças Armadas.
O objetivo consistirá em "reinicializar" o sistema de comando e quando aumentam as dificuldades na linha da frente, com o Exército russo e as forças separatistas russófonas na ofensiva.
Diversos relatos apontam para crescentes discussões entre os militares no palco de guerra, alertam sobre os efeitos no moral das tropas e assinalam o surgimento de variadas "teorias de conspiração".
Em paralelo, a amplitude das baixas do Exército ucraniano continua a ser mantida em segredo, mas ao contrário do que sucedeu no início do conflito, registam-se atualmente grandes dificuldades em convocar voluntários para a frente.
"Zelensky tem o direito de remover Zaluzhny. Mas necessita de uma muito boa justificação para isso, uma muito boa explicação que seja entendida pelos ucranianos", comentou na passada semana Oleksii Haran, diretor da Fundação Iniciativas Democráticas em Kyiv, citado pela agência noticiosa Associated Press (AP).
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