Três têm nome conhecido, os outros apenas números inscritos nas fotocópias de apresentação dos cadáveres, que foram coladas na parede da morgue com as suas fotos, algumas quase irreconhecíveis. Mas sabe-se que o número 4 é Mohamed Talib, o 13 Mohanad Khaled Abdul Rahiman, e o 15 Walid Ali, que era militar.
Quem quiser conhecer o outro lado da parede pode entrar e vê-los de perto, no interior de uma câmara metálica, apenas protegida por um pequeno telheiro. Apesar de enrolados em plásticos pretos, o que sobra dos seus rostos sobre o chão de cimento ficou destapado.
A pequena morgue tornou-se nos últimos dias uma visita obrigatória para os familiares de pessoas desaparecidas durante os últimos anos da ditadura repressiva de Bashar al-Assad, que foi derrubada no passado domingo por uma coligação de grupos rebeldes armados.
Segundo o responsável de Al-Mujtahid, foram entregues desde então 36 corpos de reclusos do sistema prisional à unidade hospitalar situada no centro de Damasco, dos quais 26 foram recolhidos e levados por familiares. Aqueles dez por reclamar são provenientes da prisão militar da capital síria.
Ayman al-Harash, que pertence a um comité de gestão do hospital, não teve acesso aos relatórios dos médicos legistas que analisaram os cadáveres, mas sabe que todos foram vítimas de balas de armas de fogo e um deles de múltiplos tiros, provavelmente uma rajada, e tanto quanto lhe foi dito estiveram anteriormente presos na sinistra prisão política de Sednayah, nos arredores da capital.
Àquela dezena de corpos, juntam-se outros oito por reclamar, que repousam numa secção de gavetas frigoríficas, mas que estão sempre a ser abertas por pessoas em desespero à procura dos seus familiares, ignorando que estes tenham morrido de causas naturais, "como é normal, as pessoas morrem nos hospitais", observa al-Harash.
O movimento de entrada é constante, entre o desejo misturado com o seu contrário de que entre aqueles corpos das prisões de Assad estejam parentes desaparecidos, alguns há mais de uma década nas prisões do regime. E o de saída também, acompanhado de sentimentos da resignação de quem retorna ao ponto de partida e também de raiva.
"Bashar [al-Assad], espero que Deus queime o teu coração e que os teus filhos ardam no inferno", grita uma mulher, Majdolin, que tem sete desaparecidos na família, entre os quais dois filhos e dºººois irmãos e um deles em parte incerta desde 2011, o ano do começo dos protestos associados à Primavera Árabe, que foram brutalmente reprimidos pelas autoridades.
A mulher não cessa as suas palavras de revolta, acusando igualmente "a nação árabe de nada fazer", quando os seus filhos e irmãos estavam "abandonados, sozinhos e esfomeados" nas prisões, incluindo Sednayah, nos arredores de Damasco, onde cerca de três mil presos políticos permaneciam há anos em condições sub-humanas até serem todos libertados no domingo, muitos dos quais em debilidade extrema e de imediato encaminhados para o hospital. "Ninguém os ajudou", insiste.
É para a antiga prisão política e campo de extermínio, onde os prisioneiros eram encarcerados às dezenas por cada cela, torturados e em muitos casos enforcados, que Samira Bashir Al-Hamd, 55 anos, ruma todas as manhãs, na tentativa de confirmar que algures na prisão, e no seu subsolo onde os "capacetes brancos" da proteção civil cessaram as buscas, haja algum sinal que conduza ao seu filho Zahir, que teria 27 se fosse vivo.
Dele apenas sabe que estava em Sednayah quando o conseguiu visitar uma única vez -- um privilégio raro - e, segundo relata, foi aconselhada pelos guardas a não fazer mais nenhum pedido ou não voltaria a ver o filho. "Um mês e meio depois recebi um papel a dizer que estava morto".
A ameaça cumpriu-se, Samira nunca mais reencontrou Zahir, não recebeu nenhuma certidão de óbito, nem sequer o corpo. Nem de outro filho, Mohamed, que estava incorporado na forças armadas e desapareceu depois de ter sido informada que seria submetido a uma cirurgia na cabeça.
A tragédia familiar não acaba aqui. Esta mãe de seis filhos que traz um hijab preto conta ainda que perdeu outro rapaz, abatido a tiro quando saía de uma mesquita, e uma rapariga, numa morte que atribui ao ataque com armas químicas em al-Ghouta, nos arredores de Damasco, em 2013.
"Só quero que prendam Bashar e que os meus filhos voltem para casa", desabafa Samira, entre um coro de choro e clamores de indignação de outros visitantes da morgue de Al-Mujtahid, após vislumbrarem o assombroso cenário dos cadáveres por reclamar.
Nos muros do hospital, foram desde domingo colados dezenas de papéis com nomes e fotografias de outros desaparecidos durante a voragem repressiva de Assad: Hassam al-Zouid, nascido em 1971, estava preso em Sednayah desde 2013, Ahmad Moussa al-Hachich, também em Sednayah desde 2014, Mohamed Ahmad al-Hachich, possivelmente seu irmão, preso em parte incerta, Mohamed al-Sayki, sem detalhes...
A todas estas mensagens, que rematam sempre com os números de telefone de contacto, corresponde uma história de um cidadão sírio numa grande lista de ausentes nas cadeias do país, em larga maioria sem acusação nem advogado, e muitos casos escondidos nas suas celas imundas, e dos seus familiares que nunca desistiram de os encontrar, sobretudo agora que o regime caiu.
Dentro dos muros do maior hospital governamental de Damasco, o ambiente opõe-se ao clima festivo que se apoderou das ruas da capital desde há quase uma semana, quando os militares revoltosos assumiram o controlo da cidade.
Entre eles Mohamed al-Akadani, 24 anos, em busca de um tio desaparecido há mais de uma décadas na fábrica de massas onde trabalhava e foi preso.
"Estou à procura dele nos hospitais desde que cheguei a Damasco", conta o soldado rebelde, após sair de Al-Mujtahid sem mais pistas do que aquelas que tinha quando entrou.
Mesmo que o filho Muhammad de 19 anos estivesse naquele monte de corpos, Ahmed Saud Hussein duvida que o reconhecesse, de tão avançada que está a decomposição de muitos deles, pedindo às autoridades que peçam ajuda a entidades e façam todas as análises comparativas de ADN possíveis para esgotar as possibilidades de o encontrar: "Só preciso de saber de está vivo ou morto e onde, para fazer o funeral".
Segundo o responsável do comité de gestão do Hospital Al-Mujtahid, no início da revolta da Primavera Árabe houve um problema semelhante, com uma grande quantidade de corpos por reclamar e que acabaram por ser entregues às autoridades locais para os sepultar, depois de fotografados e registada a sua localização para uma eventual exumação posterior.
"Nestes casos, deverá acontecer o mesmo", prossegue Ayman al-Harash, dando conta que o seu hospital, com capacidade para cerca de 450 doentes, está praticamente cheio, com médicos suficientes, embora enfrentando falta de enfermeiros e equipamentos desatualizados.
Mas não é disso que se queixa Om Hamad, uma mãe de chador preto incansavelmente à procura de três filhos desde 2011. "Três!", repete, mostrando no telemóvel a fotografia de cada um: "Três".
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