Desde a tomada de posse, em 20 de janeiro, Trump tem demonstrado uma vontade inabalável de alargar os limites dos poderes presidenciais, ignorando normas estabelecidas e forçando uma redefinição dos equilíbrios de poder entre os três ramos do sistema político.
Analistas ouvidos pela agência Lusa e outros que se têm pronunciado em diferentes meios de comunicação social sobre o início deste mandato de Trump dividem-se entre os que acreditam estarmos perante uma crise constitucional e os que preferem dar o benefício da dúvida relativamente às intenções democráticas do Presidente.
A noção de crise constitucional não é consensual entre especialistas, mas a prática de desafiar leis e decisões judiciais é, segundo Erwin Chemerinsky, reitor da Escola de Direito de Berkeley, um sintoma evidente.
"Estamos, neste momento, a viver uma crise constitucional", explica Chemerinsky, citado pelo jornal The New York Times, lembrando que "as ações inconstitucionais e ilegais multiplicam-se a um ritmo sem precedentes".
Entre as medidas mais controversas, destacam-se a revogação da cidadania por nascimento, o congelamento de gastos federais sem autorização do Congresso e a destituição de funcionários protegidos por normas de serviço público.
Contudo, Kristin Hickman, professora de direito administrativo na Universidade de Minnesota, aconselha alguma moderação na avaliação de uma situação de crise constitucional.
Em declarações à agência Lusa, Hickman lembra que os tribunais têm conseguido impor barreiras a iniciativas que violam leis estabelecidas pelo Congresso e que o próprio Trump admitiu que aceitaria as decisões do sistema judicial, limitando-se a anunciar que poderia recorrer de sentenças que lhe sejam desfavoráveis.
"Parece-me exagerado falar em crise constitucional. Não temos, para já, nenhuma garantia de que esse cenário seja inevitável", disse a especialista.
Ainda assim, a tensão entre a Casa Branca e os tribunais atingiu um ponto crítico após o anúncio de Trump de que não respeitaria a decisão do Supremo Tribunal relativa à venda da aplicação TikTok.
Kate Shaw, professora de Direito na Universidade da Pensilvânia, destacou à Lusa o risco de um precedente perigoso: "Quando um presidente desafia sistematicamente as decisões judiciais, o equilíbrio constitucional fica comprometido".
No plano internacional, as ações de Trump também têm desencadeado uma onda de preocupação, particularmente na Europa.
A imposição unilateral de tarifas sobre o aço e o alumínio, acompanhada pela ameaça de novos impostos sobre bens europeus, tem causado alarme em Bruxelas.
"Estas tarifas terão um impacto negativo avassalador na prosperidade e segurança de ambos os lados do Atlântico", alertou a Câmara Americana de Comércio junto da União Europeia (UE).
A reconfiguração das relações comerciais com o Canadá, México e China, através da aplicação de tarifas recíprocas, ameaça desmantelar o sistema multilateral de comércio sustentado pela Organização Mundial do Comércio (OMC).
Para já, os líderes europeus têm reagido com uma mistura de alarme e de pragmatismo.
O Presidente francês, Emmanuel Macron, apelou para uma "resposta firme e unida" da UE e a ex-chanceler alemã Angela Merkel, apesar de já fora da política ativa, recordou em declarações recentes que "o multilateralismo está em risco como nunca".
Entretanto, o Reino Unido, tradicional aliado dos EUA, do trabalhista Keir Starmer, procura negociar um novo acordo comercial com Washington, tentando evitar ser apanhado na tempestade protecionista de Trump.
"Temos de proteger os nossos interesses sem antagonizar os EUA", afirmou um diplomata britânico, citado pelo jornal The Guardian.
Internamente nos Estados Unidos, o impacto económico das medidas protecionistas de Trump já se faz sentir.
O aumento de preços nos bens importados e a retaliação de parceiros comerciais levaram à suspensão de investimentos por parte de várias empresas.
Kate Shaw recorda que há "cadeias de abastecimento que estão já a ser reconfiguradas" e avisa que "as famílias americanas acabarão por pagar o preço desta política protecionista", citando alertas da Federação Nacional do Comércio de Retalho dos EUA.
Num outro plano, diversos analistas referem que o uso intensivo do poder presidencial para fins pessoais --- desde o indulto a apoiantes condenados pelo ataque ao Capitólio até à nomeação de aliados para cargos estratégicos --- levanta questões éticas.
"Estamos perante uma erosão sistemática dos princípios de imparcialidade e mérito", critica Lindsay Chervinsky, especialista em história presidencial, citada pelo The New York Times, e, em declarações à Lusa, Hickman reforçou a ideia do risco de uma redefinição das regras de conduta na Casa Branca que pode abrir precedentes difíceis de reverter.
Esta especialista salienta ainda a eficácia comunicacional das medidas de Trump, que o colocam com elevados níveis de popularidade (apesar de estes serem comuns no início de mandato), e alerta para as dificuldades que a oposição democrata está a sentir para travar este fluxo de ação governativa.
O Partido Democrata, apesar das críticas veementes que tem repetido, enfrenta dificuldades em encontrar uma estratégia eficaz para travar a ação da Casa Branca.
"A velocidade e a agressividade das ações de Trump dificultam uma reação coordenada", reconheceu Adam Schiff, congressista democrata.
E, mesmo entre os republicanos, há vozes que alertam para os perigos da concentração de poder.
Liz Cheney, ex-congressista e crítica de Trump, admitiu que "o Partido Republicano arrisca tornar-se cúmplice da erosão constitucional" e, como outros dirigentes de fações mais moderadas dos conservadores, cresce um sentimento de que o Presidente esteja a reforçar uma atitude autocrática no regime norte-americano.
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