Os EUA estão a cancelar apoios que davam até agora a várias faculdades portuguesas e a enviar questionários às universidades sobre "ideologia de género" e influências "malignas da China", o que está a gerar uma onda de revolta, com os reitores a recusarem responder às perguntas da administração Trump.
Na quinta-feira, a Lusa avançou com o facto do governo dos EUA tinha cancelado ao Instituto Superior Técnico (IST) um programa que permitia ter nas suas instalações um espaço de divulgação da cultura americana, tendo a instituição portuguesa sido questionada sobre ligações a organizações terroristas.
À agência, o presidente do IST, Rogério Colaço, disse que recebeu a 5 de março a comunicação do cancelamento, com "efeito imediato", do programa 'American Corner' e, no mesmo dia, um inquérito com "questões bastante desadequadas" sobre se o IST colaborava ou não, ou era citado ou não em acusações ou investigações envolvendo associações terroristas, cartéis, tráfico de pessoas e droga, organizações ou grupos que promovem a imigração em massa.
O Técnico respondeu que não iria responder ao questionário porque "não se adequava a uma instituição de ensino superior pública sujeita a escrutínio público e legal de um país democrático membro da União Europeia".
O "descaramento" das 36 perguntas
O diretor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL), Hermenegildo Fernandes, contou à Lusa que recebeu o mesmo questionário, admitindo ter ficado estupefacto pela "dimensão do descaramento" das perguntas, nomeadamente sobre "agendas climáticas", se a instituição tinha "contactos com partidos comunistas e socialistas" ou "relações com as Nações Unidas, República Popular da China, Irão e Rússia" e o "que fazia para preservar as mulheres das ideologias de género".
A faculdade optou igualmente por não responder ao questionário - que o jornal Expresso revela hoje que era constituído por 36 perguntas - notando que "a sua dependência é com as políticas científicas de Portugal e da União Europeia".
Neste caso não se sabe se o programa 'American Corner' foi cancelado ou não à faculdade, que tem um "espaço americano" a partilhar instalações próximas com o Instituto Confúcio, entidade oficial da China que promove a cultura e a língua do país.
Já a Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, disse apenas, sem mais detalhes, que o 'American Corner' é "um projeto anual que terminará em setembro" e que estão "a avaliar a hipótese" de se candidatarem "à continuação do projeto ou não".
Em Aveiro, estão também em causa dois projetos. O valor é pouco significativo, mas a decisão tem um simbolismo que não pode ser ignorado, segundo o reitor.
Para já as universidades do Porto e dos Açores ainda não reagiram a estas notícias.
Questões "intoleráveis"
Entretanto, o reitor da Universidade de Aveiro e presidente do Conselho de Reitores também lamentou os termos da comunicação feita pela Embaixada dos EUA, condicionando a continuidade de financiamento à resposta a perguntas "intoleráveis".
Segundo Paulo Jorge Ferreira, do questionário figuram perguntas como "se não trabalham com entidades associadas a partidos comunistas, socialistas, ou totalitários", ou ainda se receberam financiamento da República Popular da China, incluindo os institutos Confúcio, da Rússia, Cuba, ou Irão.
O responsável salientou ainda, à Lusa, que o programa 'American Corner' "tem mais de dez anos de atividade, sem qualquer incidente, e tem sido impulsionador na comunicação da Ciência".
No caso de Aveiro, o reitor disse que "o valor do financiamento é pequeno" e tem até a ver com o interesse americano na promoção da cultura americana.
"Concedo totalmente ao financiador a legitimidade para decidir continuar ou cessar esses financiamentos, mas o que não me parece correto é condicionar as instituições ou pedir-lhes que informem acerca de coisas que são ofensivas para a sua independência e para a sua liberdade académica", reagiu.
Perante isto, o Conselho de Reitores (CRUP) decidiu manifestar o desagrado ao Governo e ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, por considerar “abusivas” as perguntas enviadas às universidades, que configuram uma tentativa de “ingerência na autonomia científica e pedagógica”, consagrada na Constituição e no Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior.
Terrorismo, cristianismo, ideologia de género e justiça climática
Além das perguntas políticas e sobre ideologias de género, o jornal Expresso revela que fazem parte do questionário perguntas sobre "justiça climática" e "perseguição ao cristianismo".
Nas linhas por abaixo de cada questão constam as referências a decisões e ordens executivas de Donald Trump tomadas neste mandato, como: "Acabar com os programas governamentais DEI (Diversidade, Equidade e Inclusão) e preferências radicais e inúteis", "A América primeiro nos acordos internacionais relativos ao ambiente", "Defender as mulheres da ideologia de género extremista e repor a verdade biológica no governo federal" ou "Reavaliar e realinhar a ajuda externa dos EUA".
Revisão de contratos para assegurar "coerência" com EUA
Sobre os inquéritos enviados, a porta-voz da embaixada norte-americana, Marie Blanchard, explicou, ao Expresso, que as várias agências e embaixadas dos EUA foram instadas a "rever todos os contratos e apoios para assegurar que são coerentes com as mais recentes ordens executivas da Casa Branca".
O mesmo já aconteceu noutros países, como Austrália, Suíça ou Países Baixos. Em Portugal, assegurou Marie Blanchard, os EUA têm "excelentes relações com os seis American Corners", que considerou serem "ótimos parceiros".
'American Corners' têm décadas
Em Portugal, os chamados 'espaços americanos' ou 'American Corners', financiados pelo Governo norte-americano e que a Embaixada dos EUA em Lisboa descreve como "centros de informação e cultura", são seis e funcionam todos em faculdades: Universidade dos Açores, de Aveiro, Faculdade de Letras do Porto, Faculdade de Letras de Lisboa, Faculdade de de Ciências e Tecnologia da Nova de Lisboa e Técnico.
No IST, o 'American Corner' funcionava há mais de dez anos e, de acordo com Rogério Colaço, promovia palestras, encontros e atividades de "divulgação e de cariz científico". O financiamento anual rondava os 20 mil euros.
Além de Portugal, há 'American Corners' em outros 139 países.
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