A invasão da Ucrânia por parte da Rússia, na madrugada de 24 de fevereiro de 2022, também apanhou muitos russos desprevenidos. Foi o caso de Elina, uma professora de línguas, de 30 anos, que prefere ocultar o apelido por razões de segurança. Nesse dia tinha ido visitar a família no sul do país. Estava sol, calor. Quase primavera.
"Lembro-me de os meus amigos e colegas terem feito publicações nas redes sociais sobre a ansiedade que sentiam em relação aos movimentos do exército, talvez um ou dois dias antes. Também me lembro de uma estranha mudança energética nos dias 20 e 21 de fevereiro, quando as pessoas à minha volta pressentiram que algo de grave estava prestes a acontecer e passaram a seguir as notícias com mais atenção", conta ao Notícias ao Minuto.
Quando acordou e viu as notícias dos jornais internacionais, que se referiam a uma guerra no centro da Europa com a Rússia como agressora, nem queria acreditar. "Sentia que era completamente surrealista e inacreditável. Sabia que as nossas vidas tinham mudado nesse dia", recorda.
Exatamente no mesmo dia, em Moscovo, 'N' – que prefere usar apenas a inicial do nome –, uma jovem russa de 27 anos, digital manager numa farmacêutica internacional, tinha marcada uma reunião de trabalho com colegas de uma equipa ucraniana, "para partilhar experiências e discutir casos relacionados com campanhas digitais para médicos". Uma reunião que não chegou a acontecer.
A jovem não acreditava nas imagens "horríveis" de cidades ucranianas bombardeadas que circulavam no X (ex-Twitter), mas quando uma colega ucraniana avisou que não podia participar na reunião porque estava num abrigo, a tentar proteger-se dos bombardeamentos de que o país estava a ser alvo, apercebeu-se da realidade que a Ucrânia enfrentava.
"Todos ficaram chocados e lembro-me de ter chorado muito. Tivemos muitas reuniões de trabalho sobre o assunto, iniciadas pelos diretores regionais e mundiais. Depois, passo a passo, os diretores mundiais impuseram algumas restrições às filiais russas, como a proibição de ensaios clínicos e atividades promocionais. Algumas farmacêuticas internacionais abandonaram a Rússia. Foi uma época morta de dois meses", lembra 'N'.
Num português quase perfeito, outra professora de línguas estrangeiras, Marina K., de 28 anos, conta que teve conhecimento de vários russos que "entraram em pânico e foram para o Cazaquistão ou para a Turquia", sobretudo os homens jovens, com medo do recrutamento militar.
Lembro-me de estar no centro da cidade, a caminhar na rua, e parecia que todas as pessoas falavam mais baixo"Todos pensávamos que ia acabar em dois ou três dias e apenas esperávamos, em silêncio, o que viria a seguir. Lembro-me de estar no centro da cidade, a caminhar na rua, e parecia que todas as pessoas falavam mais baixo. Não havia medo, mas sim uma sensação estranha de incerteza”, afirma Marina K.
Entre os grupos de amigos começaram a surgir "muitas discussões" acesas entre quem "era contra" e quem "apoiava a guerra". Elina ficava "seriamente chocada e chateada" com os amigos que apoiavam o conflito.
Acabei com o meu namorado da altura por termos opiniões diferentes sobre por onde a Rússia deveria irA 'N', que foi uma das pessoas que fugiu para Istambul, na Turquia, com o namorado no início da guerra, essas diferenças políticas levaram ao fim do relacionamento amoroso. "Acabei com o meu namorado da altura por termos opiniões diferentes sobre por onde a Rússia deveria ir", confessa.
© Notícias ao Minuto
Desemprego, pobreza e viagens "quase inacessíveis". O impacto das sanções na Rússia
Desde o início da invasão que os países ocidentais têm imposto sanções sem precedentes contra a Rússia. O Kremlin pouco deixa passar cá para fora sobre a situação económica do país, mas estas três russas falam num grande aumento do desemprego e, consequentemente, da pobreza. Até porque, com as sanções, muitas empresas europeias abandonaram o país.
As pessoas tendem a deixar de consumir alguns produtos como frutos secos, peixe vermelho, carne de boa qualidade, limitam o seu consumo e as suas despesas"Desde 2020, o meu salário aumentou três vezes, mas sinto que tenho o mesmo ou até menos. As pessoas tendem a deixar de consumir alguns produtos como frutos secos, peixe vermelho, carne de boa qualidade, limitam o seu consumo e as suas despesas. É impossível comprar um carro que não seja chinês”, exemplifica 'N'.
Elina aponta a inflação, refletida nos preços e tarifas dos serviços públicos, como o maior impacto das sanções na sua vida, mas refere também que, "para a maioria das pessoas, viajar para o estrangeiro tornou-se caro e quase inacessível".
Muitas companhias aéreas saíram do país e viajar, além de ser mais caro, ficou também mais difícil. Marina K. é "uma grande fã de viagens" e admite que as sanções "complicaram bastante as coisas", mas continua a viajar. Nos últimos três anos até já visitou Lisboa uma vez.
"A única diferença é que agora quando vamos para a Europa voamos através da Turquia, dos Emirados Árabes Unidos ou de Marrocos, por exemplo. É mais demorado e mais caro porque há várias escalas, mas não é impossível. No geral, os destinos asiáticos tornaram-se muito populares entre os russos. Muitos começaram a viajar para a Tailândia, China e também para as Maldivas e Seicheles", explica a russa.
© Notícias ao Minuto
Com a saída da Visa e Mastercard, os pagamentos bancários também ficaram mais difíceis. É preciso usar VPN para usar serviços como o Spotify ou a Netflix e ter uma conta num país estrangeiro para pagar este tipo de serviços. Mas são problemas que só afetam os mais jovens. Marina K. conta que, para a avó, "a vida não mudou nada".
"Dentro do país continua a pagar tudo com o cartão e vive tranquilamente. Para mim ficou mais complicado. No geral é mais incómodo para os jovens que usam vários serviços e viajam com frequência, mas muitos abriram contas bancárias no Cazaquistão, na Turquia ou noutros países e resolveram esse problema. Portanto, não há pânico em relação a isso", diz a professora particular de línguas estrangeiras.
Para as marcas que saíram do país, os russos também arranjaram alternativa. O McDonald’s foi substituído pelo Vkusno i Tochka, que tem "tudo igual", só "compraram os direitos e mudaram o nome", e o KFC tornou-se Rostiks. E há muitos mais exemplos deste género.
Muitas marcas de cosméticos, como a L’Oréal ou a Syoss, agora aparecem escritas em letras russas porque os direitos foram comprados e, oficialmente, são agora marcas russas"Muitas marcas de cosméticos, como a L’Oréal ou a Syoss, agora aparecem escritas em letras russas porque os direitos foram comprados e, oficialmente, são agora marcas russas com nomes em russo. Em vez da Zara agora temos a MAAG e a Stradivarius também tem outro nome, ou seja, muitos nomes foram alterados, os direitos comprados, mas as lojas continuam a existir e a funcionar. Durante uns dois anos nem comprei nada na Rússia e nem senti falta de nenhuma marca de 'fast fashion'", desabafou Marina K.
Produtos chineses 'invadem' mercado e russos aprendem mandarim: "Língua com mais futuro"
Antes da guerra, quando se chamava um táxi, os carros eram praticamente todos de marcas europeias. "Agora só vêm chineses", conta Marina K. Sem apoio do ocidente, a Rússia aproximou-se da China e, em Moscovo, os sinais estão por todo o lado. Tanto nas marcas dos carros que circulam na rua como nas decorações alusivas ao Ano Novo Chinês e nas prateleiras dos supermercados.
© Getty Images
"Abrem-se lojas inteiras com doces asiáticos, noodles, temperos, bubble tea, matcha… nos centros comerciais há muitos restaurantes e cafés. Até muitos produtos de higiene feminina da China apareceram. Sempre houve muitos turistas chineses aqui, a Praça Vermelha está sempre cheia deles, com câmaras e paus de selfie, mas há uma coisa que se nota mais: a língua chinesa está a tornar-se cada vez mais popular. Muita gente escolhe aprendê-la, tanto na infância como na idade adulta porque tem mais futuro", revela a professora.
Essa influência asiática é sentida também no círculo de Elina, com os amigos e a família a ponderarem "comprar ou não comprar um carro chinês" e a querer "viajar para a China com mais frequência".
"Diria que há um interesse crescente pelos países asiáticos por razões culturais ou comerciais. Não posso dizer que me tenha apercebido dessa mudança logo no início, mas olhando para trás acho que estava na minha própria bolha, uma bolha de informação, sem dúvida", admite Elina.
Esta mudança, para Marina K., é vista com bons olhos. Uma "oportunidade" de ver a Rússia como aliada de um "país grande e forte", com "grande produção e muito potencial".
"Isto pode ser o bom 'empurrão' de que precisávamos há muito tempo", confessa.
Comemorações do Ano Novo Chinês na Rússia© Pelagiya Tihonova/Anadolu via Getty Images
Continuar a viver na Rússia? "Na Saúde e Educação não há do que reclamar"
Mais de um terço do Orçamento do Estado para 2025 na Rússia destina-se ao setor da Defesa, mas os russos garantem que o sistema é "muito social" e no que toca há "saúde e educação não há do que reclamar".
Os cuidados médicos são gratuitos e é raro ter se de esperar mais de dois dias por uma consulta.
"Dar à luz pode ser gratuito e muitas pessoas optam por isso. As mulheres ficam de licença de maternidade durante três anos e recebem um pagamento – não o salário inteiro, claro -, mas há apoios e mantêm o posto de trabalho. As ambulâncias vêm gratuitamente, mesmo para as avós que as chamam só porque a tensão subiu. Sempre rápido e grátis", elogia Marina K..
A professora reconhece que as despesas com a Defesa estão a aumentar, "por razões óbvias", mas defende que os "setores sociais não estão a ser prejudicados por isso".
"Os filhos dos soldados que participam na guerra também recebem vagas financiadas nas universidades e apoio financeiro. Este ano celebram-se os 80 anos da vitória na Grande Guerra Patriótica e todos os veteranos vão receber um pagamento especial. No ano passado foi declarado o Ano da Família na Rússia e as pessoas que estavam oficialmente casadas há 30, 40 ou 50 anos naquele ano receberam pagamentos – um pouco como uma lotaria, claro -, mas incentiva-se a família como instituto", conta a russa.
© Notícias ao Minuto
"Podemos publicar algo sobre a guerra nas redes sociais e sermos presos por isso"
Nem tudo são rosas. Na Rússia vive-se em ditadura e as leis ficaram mais rigorosas desde o início da guerra na Ucrânia. Qualquer pessoa pode ir presa por "publicar algo sobre a guerra nas redes sociais". Por medo, Elina colocou todas as contas "em privado" e livrou-se "de seguidores sobre os quais não tinha a certeza da posição política".
"Agora nem penso nisso. Além disso, quando se faz publicações numa língua estrangeira está-se praticamente seguro. Penso que é porque quando algo está numa língua estrangeira apenas alguns leem, por isso não é algo ameaçador do ponto de vista político", explica Elina.
A morte de Alexei Navalny, o principal opositor de Putin, há um ano, foi sinónimo de fim de protestos contra o atual regime. A oposição perdeu força e Elina tem duas justificações para isso: "a forma como os adversários são eliminados, mas também a desilusão da população".
Neste aspeto, figuras como Putin e Navalny são semelhantes"A guerra na Ucrânia deu início a uma conversa – especialmente em 2022 e 2023 – na sociedade sobre o facto de as principais figuras políticas da Rússia serem muito centradas em Moscovo e não verem o país como uma federação composta por diferentes povos, diferentes histórias, línguas e religiões. Neste aspeto, figuras como Putin e Navalny são semelhantes. Isto é importante porque este tipo de retórica 'russki mir' ['mundo russo' é um termo usado para fazer referência a um conceito cultural que implica a unificação da população de língua russa em todo o mundo] tornou possível a situação com a Ucrânia", esclarece a russa.
Fim da guerra está próximo? Russos "querem muito", mas duvidam que aconteça
As russas, tal como milhões de pessoas no país de Putin, "querem muito que a guerra acabe", mas não têm muita fé em no presidente norte-americano Donald Trump nem fazem ideia de como se poderá pôr fim ao conflito.
© Notícias ao Minuto
"Devemos acabar com os conflitos em quaisquer condições. Infelizmente, anos de sanções ou ajuda militar dos Estados Unidos e da União Europeia mostraram que não ajudaram nem mudaram nada. Em relação a Trump, ele é apenas um populista e alguns dos seus discursos são apenas uma oposição a Biden", defende 'N'.
Sem grandes esperanças, querem lidar com este período de indefinição sem "entrar em pânico" e ponderando "tudo com calma".
© Notícias ao Minuto
"No início da guerra foi um verdadeiro caos na minha cabeça, mas agora já não. Tudo isso ensinou-me a manter o controlo, a analisar as coisas com tranquilidade e a não deixar que as emoções levem a melhor", confessa Marina K.
Aos ucranianos, querem as russas desejam apenas "paz e prosperidade".
"Estamos ansiosos pelo dia em que a guerra termine", desabafa Elina.
Leia Também: Homem condenado a 16 anos de prisão na Rússia por colaborar com Kyiv